Opinião – Vera Iaconelli

A psicanálise em questão.
Por que tanta gente inventou de se tornar psicanalista?

Publicado na Folha de São Paulo em 31 de janeiro de 2022.

Por Vera Iaconelli, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

 

As obras completas de Freud estão acessíveis na internet e abundam canais de YouTube e podcasts – alguns de excelente qualidade – nos quais são debatidos os conceitos fundamentais da psicanálise. O tema interessa a advogados, a professores, a médicos, a pais, enfim, qualquer pessoa que queira conhecer um dos marcos do pensamento ocidental. Existem grandes pensadores da psicanálise que nunca atuaram na clínica e cumprem inestimável função refletindo sobre a teoria e, certamente, sobre suas próprias análises. Esse conhecimento, no entanto, não fará dessas pessoas psicanalistas.

Freud deixa claro em suas “Conferências Introdutórias (1916-1917)” que não há como avançar na teoria sem ter uma experiência direta com o próprio inconsciente. Bom, então se eu estudasse a teoria e fizesse análise, me tornaria psicanalista?

Sinto muito, mas a resposta ainda é não. Amor e conhecimento profundo da teoria psicanalítica não fazem de ninguém analista, tampouco anos de análise o farão.

No entanto, alguns sujeitos, ao longo de sua própria análise, reconhecem o desejo singular de escutar o inconsciente, agora no lugar de analistas. Essa é uma afirmação tão radical quanto possa parecer: é a análise que marca a possibilidade da prática analítica. Mas como sabê-lo de antemão, antes de começar a estudar/se analisar? Não é possível. A vontade consciente – que se diferencia do desejo inconsciente – de se tornar psicanalista nos leva a fazer uma aposta no estudo e na análise, mas essa última poderá revelar motivações bem distantes da função de um analista. Motivações que deveriam demover o aspirante a analista de seguir com sua empreitada.

O desejo de analista é contingencial e, diria Lacan, aberrante, pois implica em dedicar-se à tarefa solitária e peculiar de lidar com aquilo que descartamos o tempo todo: as produções do inconsciente. Não tem nada a ver com o estudo da psicologia (confusão recorrente).

Lacan faz a pergunta que não quer calar: por que raios alguém quereria ser psicanalista? Ouvir horas a fio o sofrimento alheio sem responder às demandas do sujeito, sem aconselhar, palpitar, elogiar, criticar e ser objeto de amor e ódio imerecidos ou de queixas de excesso ou falta de compaixão, afetos transferidos das relações originais. Quando se tornou tão atraente assim ocupar esse lugar? Ofício que leva décadas para ser bem remunerado e não tem horário para acabar, pois o inconsciente não dorme.

 

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